quinta-feira, 26 de maio de 2011

Carta a Guido Beck (de 27 de Janeiro de 1944): “Fiz preparativos para sair do meu país para sempre”

Porto, 27 de Janeiro de 1944
Meu caro amigo:
Devo antes de mais agradecer-lhe pela actividade extraordinária que você realizou para me encontrar um lugar no Brasil. Nunca na minha vida me esquecerei de tudo o que fez por mim. Tenho uma história para lhe contar.
É necessário que esteja informado de uma forma precisa sobre os acon­tecimentos que se desenrolaram depois do mês de Agosto. Não tenho neste momento todos os documentos dos quais lhe queria enviar uma cópia. Encontro-me actualmente no Porto; vou pedi-los para Lisboa e enviá-los-ei numa próxima carta.
No início do mês de Outubro recebo uma carta da Embaixada do Brasil em Lisboa onde anunciavam que a Faculdade de Filosofia do Rio tinha en­carregado a Embaixada de me transmitir um convite para a cadeira de Aná­lise Superior. Fui à Embaixada onde me aconselharam a pedir elementos mais precisos sobre as condições do contrato, sobre as viagens etc. O secretário Ribeiro Couto redigiu um telegrama (diante de mim) onde ele colocava todas estas questões. No mesmo telegrama dizia que eu queria chegar ao Rio antes do fim do ano escolar para poder conhecer de uma forma conveniente a organização dos cursos e preparar e organizar a minha actividade para o ano seguinte.
Uma ou duas semanas depois recebi um ofício do Director da Faculdade Nacional de Filosofia onde estavam indicadas as condições do contrato. Pediam-me informações sobre o número de pessoas que tinha a minha família e qual era o meio de transporte que eu preferia para fazer a minha viagem. Respondi logo de seguida numa carta que remeti à Embaixada para que eles a fizessem seguir na mala diplomática (30 de Agosto). A Embaixada prometeu-me telegrafar o conteúdo dessa carta, no mesmo dia. Aceitei as condições que me propunham e escolhi o barco como meio de transporte. No dia 11 de Setembro fui mobilizado como cadete de artilharia. Avisei a Embaixada. Ribeiro Couto aconselhou-me a escrever ao Embaixador. Fi-lo. A Embaixada procurou obter uma autorização para a minha partida por intermédio do ministro dos Negócios Estrangeiros. O médico do meu regimento enviou-me ao Hospital Militar Central onde fui submetido a um exame médico. Como eu tinha uma úlcera no duodeno fui considerado como incapaz para o serviço militar no dia 2 ou 4 de Outubro. Cerca do fim de Outubro quando estava no Hospital recebi um telegrama da Embaixada assinado pelo primeiro secretário, Ribeiro Couto. Dizia que: a Faculdade de Filosofia do Rio considera a sua colaboração como indispensável, e deu a ordem para reservar as suas passagens no primeiro barco.
Logo que saí do Hospital a Embaixada deu-me a ordem para preparar a minha partida para o fim do mês de Outubro, o mais tardar para os primeiros dias de Novembro.
Fiz tudo o que foi possível para arranjar tudo nos prazos fixados. Vendi tudo o que tinha na minha casa. As autorizações militares, ou seja a regula­rização da minha situação militar obtive-a em 15 dias (em geral isso leva um mês e meio e por vezes três meses). Tive o meu passaporte no dia 22 de Outubro. Nesse dia, apresentei-me na Embaixada e informei-os de que esta­va pronto para partir com a minha família. Como deveria abandonar breve­mente a minha casa e não havia um barco nesse altura, perguntei se podia viajar de avião. A viagem de avião seria mais barata, disseram-me que não havia nenhuma dificuldade. A única dificuldade que existia era que o dinheiro para as viagens ainda não tinha chegado. Eu ia à Embaixada de 3 em 3 dias. Diziam-me sempre volte dentro de 3 dias. Num certo momento disseram-me para pedir o meu visto ao Consulado do Brasil. O Consulado não sabia de nada. Foi preciso esperar vários dias para que a Embaixada se decidisse a informar o Consulado. O Cônsul concedeu-me todas as facilidades para obter o meu visto. Quando toda a documentação necessária estava pronta aconselharam-me a não pedir o visto imediatamente, era melhor esperar que chegasse o dinheiro para as viagens. Tinha-me inscrito como passageiro para um Clipper. Esperava de um momento para o outro a ordem de partir. Estava nessa altura, muito enervado. As minhas bagagens estavam prontas: umas para seguir de barco as outras de avião.
Muito dificilmente consegui viver na minha casa onde não havia quase nada. Despedi-me de todos e a ordem de partida não chegava. Por meados de Novembro os Secretários da Embaixada já estavam enervados. Resmun­gavam contra a burocracia do Rio. Disseram-me que tinham enviado um telegrama onde contavam a situação impossível em que me encontrava. Que não tinha trabalho, que não tinha casa etc. O meu aluguer terminava no fim de Novembro. Tive de ir para uma pensão com a minha família. Tinha feito despesas enormes com os preparativos de viagem, passaportes, malas etc. no fim de Novembro já tinha gasto quase todo o dinheiro que obtive com a venda da minha casa. A situação começava a tornar-se impossível. Por outro lado, não tinha conseguido obter as informações necessárias para começar a preparar o meu curso. Então escrevi de novo uma carta ao Director da Faculdade do Rio pedindo-lhe para me enviar informações sobre os progra­mas, e contei-lhe a situação em que me encontrava (primeiros dias de Novembro). Então Ruy convidou-me a vir para Porto para esperar aqui pela minha partida e trabalhar no Centro de Estudos do Porto.
Estou aqui desde 5 de Dezembro. Antes de partir pedi autorização para sair de Lisboa na Embaixada do Brasil. Fi-lo para lhes lembrar que estava às ordens da Embaixada desde o dia 22 de Outubro. Até ao fim do mês de Dezembro não tive notícias da Embaixada.
A 29 de Dezembro de 1943, escrevi a seguinte carta ao Dr. Frank Moscoso, Secretário da Embaixada do Brasil:
«Senhor Doutor: Venho pedir-lhe o grande favor de me informar se já chegaram novas notícias sobre a minha viagem. A minha situação é cada vez mais grave sob o ponto de vista material e ando muito preocupado com a redução do tempo que tinha à minha disposição para organizar o trabalho escolar para o próximo ano lectivo. Por isso espero com verdadeira ansieda­de a resposta às informações que pedi ao Excelentíssimo Director da Faculdade de Filosofia sobre o programa da cadeira de Análise Superior. Creia que ando verdadeiramente amargurado com todos os incómodos que as circunstâncias da minha vida actual me têm levado a causar-lhe. Com os pro­testos do meu maior respeito e admiração: António Monteiro».
Até hoje ainda não recebi resposta. Desculpe tinha-me esquecido que estou a escrever em francês. Até agora não tive resposta a essa carta.
A 4 de Janeiro de 1944, Ruy comunicou-me o seu telegrama que tinha recebido alguns dias antes. Nesse dia comecei a ficar inquieto. Fiquei muito surpreendido de saber que havia dificuldades para obter o meu visto de saída. Não sabia nada a esse respeito. Na Embaixada nunca me falaram disso.
Telegrafei a 4 de Janeiro ao Professor Wattaghin:
«Situação insustentável – Stop – Desde Outubro aguardo chegue Embaixada Brasil dinheiro viagens favor intervir urgência Rio telegrafar Faculdade Ciências Porto agradecimentos António Monteiro».
Até hoje ainda não recebi resposta a este telegrama.

O Ruy pediu ao seu irmão para fazer uma diligência pessoal junto do Embaixador do Brasil. Falaram de novo das dificuldades administrativas para enviar o dinheiro para pagar as viagens etc. Que havia dificuldades administrativas no Ministério da Educação Nacional. O Ministro prometeu interessar-se pelo meu caso e fazer as diligências necessárias, mas não falou da existência de outras dificuldades para a minha partida. Enviei para a Embaixada do Brasil o telegrama seguinte: (5 de Janeiro de 1944).
«Dada gravidade minha situação sob o ponto de vista material e profissional peço Vossa Excelência Senhor Embaixador grande favor me informar sobre estado actual das dificuldades administrativas existentes Rio para pa­gamento minhas viagens e de esclarecer Director Faculdade Filosofia gra­vidade minha situação. Respeitosos cumprimentos: A. Monteiro».
Até hoje ainda não tive resposta a este telegrama.
Em resumo é tudo o que lhe posso dizer sobre a minha situação. Ela não é brilhante. Tinha feito os preparativos para viver a 40 graus à sombra e estou no Porto. Eu e a minha família não temos vestuário de inverno; vendemo-lo ou dêmo-lo. Os meus filhos abandonaram a escola no momento em que eu contava partir de um dia para o outro. A minha mulher deixou o seu emprego. Eu estou desempregado. Se não fosse a ajuda de Ruy Gomes não saberia como sair desta situação. As minhas malas estão na Agência Cook e pago 75$00 por mês.
Após a diligência do irmão de Ruy nós enviámos-lhe um telegrama a 16 de Janeiro. Acho que você o recebeu. Descreve a minha situação actual de uma forma quase precisa.
Acabámos de receber a sua carta de 3 de Janeiro. Fiquei muito espantado, 24 dias! Contávamos 6 meses para que uma carta chegue à Argentina neste momento. Essa é a razão principal pela qual ainda não lhe tinha escrito. Sempre pensei que chegava ao Brasil antes de qualquer carta.
Então decidi escrever-lhe. Se eu chegar ao Brasil antes desta carta melhor. Faço actualmente diligências para saber efectivamente se encontrarei ou não dificuldades para ter a minha licença de saída. Assim que eu tiver uma morada certa telegrafo-lhe novamente. Fiquei muito sensibilizado com a sua carta. Realmente você foi um bom camarada e um amigo dedicado. Estou-lhe muito reconhecido. É absolutamente necessário que eu consiga sair deste país, onde já não posso viver. Fiz preparativos para sair do meu país para sempre.
Na próxima semana vou escrever-lhe de novo para lhe enviar uma cópia dos documentos que não tenho no Porto.
Agora estou preparado para poder partir, a tempo de chegar antes do início do ano escolar.
Escreva-me assim que receber esta carta. Envie-me notícias da sua vida. Os seus trabalhos e os seus alunos? Está contente com a sua situação escolar?
Proca encontra-se no Porto. O Instituto para a Alta Cultura deixou-o cair ao fim de 3 meses. Ele já não tem nenhuma ajuda aqui. Assim que esteja no Rio vou ocupar-me em encontrar-lhe um lugar.
Desculpe esta carta em estilo telegráfico e tão longa. Espero que ela o encontre de boa saúde e com a sua disposição habitual. O Porto continua a ser uma cidade de romances policiais. A vida aqui é muito aborrecida.
Um grande abraço do camarada e amigo muito grato
(António Monteiro)
António Monteiro
Faculdade de Ciências
Porto

Copiada de:
(Um livro comovente! Nele se reconhece o papel fundamental que teve Guido Beck na ida de António Aniceto Monteiro para a América do Sul)