O regresso de António Monteiro a Portugal de 1977 a 1979
Alfredo Pereira Gomes
Desde 1945, António A. Monteiro não voltara a
pisar solo português, por um compromisso para consigo próprio
face à posição obscurantista, adversa
à livre criatividade científica e cultural do sistema que dominava a vida política e social portuguesa. Após o
restabelecimento dum regime democrático em Portugal em
25 de Abril de 1974, era aspiração dos
seus muitos amigos, antigos companheiros, discípulos e admiradores, que fossem criadas condições propícias ao
seu regresso senão definitivo pelo menos suficientemente
duradouro para que a nova geração de
matemáticos o conhecesse e beneficiasse da sua personalidade ímpar de investigador e promotor de escolas de
investigação. Alguns dos que com ele trabalharam antes
de 1945, iniciámos diligências nesse
sentido. Entretanto, impedimentos de ordem pessoal – designadamente a prisão de seu filho Luiz Monteiro,
durante mais de quatro meses – fizeram obstáculo a esse
desiderato. Somente no início de 1977
António A. Monteiro pôde voltar a Portugal, tendo aqui permanecido cerca de dois anos, como investigador do
Instituto Nacional de Investigação Científica (I.N.I.C.),
no Centro de Matemática e Aplicações Fundamentais (C.M.A.F.)
das Universidades de Lisboa.
Há a registar que não foi simples o
desenvolvimento do processo para lhe criar uma posição actuante, como
investigador, dentro das estruturas
vigentes universitárias ou de investigação científica, pouco adequadas ao ingresso de investigadores. Na
correspondência com ele trocada
desde Janeiro de 1976 a tal respeito, transparece a sua perplexidade e até algum cepticismo.
Finalmente, em Outubro de 1976, com o seu
assentimento, foi dirigida ao
Secretário de Estado de Investigação Científica uma exposição propondo a contratação de António A. Monteiro como
investigador do I.N.I.C., a título excepcional e no
escalão mais elevado, para dedicar-se
exclusivamente à investigação e à difusão dos seus resultados. Esta exposição foi apoiada pelos professores de
matemática das Universidades de Lisboa, Coimbra e Porto. Nela se fazia
ressaltar que António A. Monteiro fora o matemático
português que mais decisivamente
tinha contribuído para a renovação dos estudos matemáticos em Portugal e que a sua obra de investigação e
formação de discípulos tinha prosseguido
em centros universitários estrangeiros com assinalado êxito. Afirma-se ainda a convicção de que a presença
de António A. Monteiro em Lisboa
contribuiria grandemente para dar aos estudos em Álgebra da Lógica o lugar de destaque de que carecia entre nós e
para abrir uma via de investigação neste sector. Aquela
proposta teve despacho favorável do
Secretário de Estado, que na ocasião era um professor de matemática da Universidade de Lisboa.
A sua saúde frágil – obrigando-o embora a
cuidados médicos e curtos períodos de
repouso – não o impediu de desenvolver uma actividade intensa, iniciada logo após a sua chegada a Lisboa,
com o entusiasmo e a pertinácia que sempre lhe
conhecemos.
Quando no dia 31 de Maio o visitámos ao fim
da manhã, encontrámo-lo alegre, triunfante. Contou-nos que se
havia levantado cedo e que às nove horas
tinha enfim encontrado a demonstração dum teorema de que se ocupava havia três meses: «é o meu próprio
presente de aniversário», comentou. O septuagésimo!
Nesta singela anedota pode sintetizar-se a sua personalidade de matemático.
Homem de cultura integral, o seu interesse
não se confinava na investigação
matemática e afirmava-se infatigavelmente na leitura de obras literárias, de
história das ideias ou de sociologia. A nova Sociedade Portuguesa de Matemática recém-criada – fazendo
reviver aquela de que ele fora Secretário-Geral desde 1940 – captou
a sua atenção, e a sua intervenção foi decisiva, como
fundador da Portugaliae Mathematica,
para que esta revista se tornasse património
dessa Sociedade, tornando assim possível a continuidade da sua
publicação com novos editores e
renovados apoios.
No C.M.A.F. das Universidades de Lisboa,
dependente do I.N.I.C., criou
uma linha de investigação em Álgebra da Lógica e proferiu conferências sobre os seus trabalhos, atraindo
alguns discípulos, a quem propôs
temas de investigação e prodigou conselhos. Daí resultaram notas publicadas em revistas da especialidade e duas
teses de doutoramento.
A convite da Faculdade de Ciências da
Universidade do Porto, aí proferiu três
conferências em Julho de 1977, sobre «Álgebras de Boole cíclicas», «Álgebras de
Nelson finitas e lineares», «Aritmética dos filtros em espaços topológicos».
Muito interessado pelas aplicações do seu
domínio de investigação, manteve
contactos com engenheiros e docentes do Instituto Superior Técnico de Lisboa, em cuja revista «Técnica»
publicou um trabalho no número
dedicado à memória de Aureliano de Mira Fernandes.
Apesar da longa lista de artigos publicados,
certo é que, para António A. Monteiro,
era bem menos atraente redigir os seus trabalhos do que ocupar-se de problematizar as suas conjecturas e
encontrar as soluções. Por vezes nos falou disso e nos deu
a ocasião de instar com ele para
não adiar a divulgação dos seus resultados. Em carta de 5 de Junho de 1978, que nos enviou para Paris, escreve:
«Hoje tomei finalmente uma decisão importante: suspender
o trabalho de investigação e passar a
redigir. Estou realmente cansado e penso que mais vale tarde que nunca. Ainda fiz outro trabalho depois que
você saiu para Paris». E acrescentava:
«Estou realmente satisfeito com os resultados
da minha actividade científica em Portugal. Isto deve-se sobretudo ao Centro de
Matemática; (C. M. A. F.), que me proporcionou o tempo
livre para estudar. Entretanto, creio que fiz um
esforço superior às energias disponíveis na minha idade. Sinto que tenho de moderar a minha actividade. Fora isto, a única notícia suplementar é que ainda não fiz as
conferências na Faculdade de Ciências
de Lisboa, que propus no mês de Outubro; pela simples razão de que não as marcaram. Não há interesse ou não querem. Paciência! Não volto a insistir que já me dá
vergonha. Darei este mês uma série de
conferências na Faculdade de Ciências do Porto. A de Lisboa parece que não mudou muito com o tempo. O
peso da tradição é uma força
extraordinária. Nos 4 ou 5 anos que andei na Faculdade de Ciências como aluno, nunca ouvi falar de
«conferências» de matemática. Se
houve alguma não me lembro».
No verão desse ano, como incentivo para
completar a redacção dos seus trabalhos,
sugerimos a António A. Monteiro – de conivência com Lídia Monteiro, sua inigualável companheira – que
concorresse, com o trabalho que começara a redigir, ao
Prémio Gulbenkian de Ciência e Tecnologia 1978. Após
curta hesitação prosseguiu essa tarefa, afincadamente,
como em tudo o que empreendia. Quando terminou, pouco tempo antes do fim do prazo do concurso, disse para Lídia, displicentemente: «aí está, para te fazer a vontade e
ao Pereira Gomes...».
O Prémio foi-lhe conferido. Pode hoje
pensar-se que mais importante foi
porém a motivação que ele constituiu para António A. Monteiro contrariar o seu gosto prioritário pela
investigação e ter dado forma a essa
obra, «Sur les Algèbres de Heyting Symétriques», que, neste volume em sua homenagem, se publica.
Cremos caber aqui uma palavra de homenagem que
também é devida a sua esposa, pela constante dedicação
nas boas e más horas duma longa vida comum e pela lúcida e
carinhosa compreensão das exigências dum
trabalho científico absorvente e apaixonado como era o dele. Cremos que essa presença solícita foi de
grande significação para que – através
de tantas vicissitudes que povoaram a vida de ambos – António A. Monteiro tivesse conseguido dar realização plena à sua vocação e ao seu talento.
De regresso a Bahía Blanca a ligação com o
C.M.A.F. e as actividades matemáticas de Lisboa não se
desvaneceram. Mostra-o a correspondência que
manteve com alguns amigos ou discípulos daqui, cartas longas e de grande interesse, onde se refere, simultaneamente, por
vezes, às situações de Lisboa, às investigações matemáticas, aos seus
discípulos argentinos que de novo vêm ao seu encontro e a quem continua a encorajar e a propor temas de trabalho
matemático.
Em carta que nos dirigiu em 31 de Maio de
1979, encara a perspectiva de voltar a
Portugal, embora com hesitações. Menciona um período de doença aguda ultrapassada, para acrescentar:
«Comecei de novo a levantar-me às 4 ou 5 da manhã para
trabalhar. São tão lindos os
temas sobre os quais estou trabalhando, que não quero perder tempo». E descreve-os pormenorizadamente em 4 páginas
de letra cerrada.
A 5 de Dezembro do mesmo ano: «A grande
notícia que me manda é que parece ter
conseguido subsídios para publicar a Portugaliae Mathematica de 77, 78 e 79. Seria realmente muito importante que isso
se faça». E mais adiante: «...começo a perguntar
o que posso eu fazer em Portugal. Neste
momento [sublinhado] eu estou convalescente, não posso
regressar. Creio que o que têm a fazer é eliminar-me dos quadros do C.M.A.F. e depois veremos». Termina a carta
com um «post-scriptum»: «Avante com
a Portugaliae Mathematica».
Em 17 de Setembro de 1980 – mês e meio antes
de falecer – diz-nos a sua preocupação com o seu estado de
saúde. E comenta: «A única coisa que
fiz durante este largo período foi escrever à Isabel Loureiro [cuja tese de doutoramento começara a orientar em
Lisboa] sobre o seu trabalho, o que fiz com muito
esforço e sacrifício. Foram 52
páginas de matemática». E a seguir: «O objectivo principal desta carta é congratular-me com as excelentes notícias que
manda sobre a Portugaliae Mathematica. (...) Faltaria resolver o problema da Gazeta [de Matemática] que deveria entregar tudo à
Sociedade Portuguesa de Matemática».
Comovidamente pensamos que, não fora a sua
saúde muito precária, ele teria regressado à terra da sua
juventude, onde as suas iniciativas
constituíram, e permanecem, as linhas mestras do desenvolvimento matemático deste país. Apesar das fortes
amarras que o prendiam à Argentina, pelos elos familiares e pelo amor à Escola
Matemática que ali criou.