O exílio de António Aniceto
Monteiro (*)
Jorge Rezende
António Aniceto Monteiro (1907-1980) foi a mais importante figura da década
prodigiosa da matemática portuguesa dos anos 30 e 40 do século passado. Foi o
primeiro secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Matemática e talvez o
principal impulsionador da sua fundação. Exilou-se no Brasil no princípio de
1945.
Uma carta da Secção de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade
de Lisboa (FCUL), datada de 7 de Outubro de 1976, assinada por vários
professores encabeçados por Alfredo Pereira Gomes, que provavelmente a
escreveu, e dirigida ao Secretário de Estado da Investigação Científica, dizia
explicitamente: «O
Professor António Aniceto Monteiro após o seu Doutoramento em Paris, como
bolseiro do Instituto de Alta Cultura [IAC], foi nomeado, em Julho de 1936,
investigador deste Instituto tendo sido em Outubro do mesmo ano demitido pela
honrosa razão de não assinar a declaração do conhecido decreto nº 27.003
[«Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela
Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as
ideias subversivas»] ficando em consequência impossibilitado de prosseguir uma
carreira docente universitária o que havia de o conduzir ao exílio anos mais
tarde.»
Já em 31 de Outubro de 1945, Manuel Valadares (físico, que veio a ser
professor catedrático da FCUL), em carta publicada no jornal «República»,
referia: «Regressado
ao País e mau grado o valor dos trabalhos que realizara no estrangeiro,
[Monteiro] não encontrou lugar no corpo docente de nenhuma das três Faculdades
de Ciências do País. Passou então a viver com uma modestíssima bolsa que o IAC
lhe concedeu; passados alguns meses, exigiram-lhe, para poder continuar a ser
bolseiro, a assinatura de um compromisso politico — que pessoa alguma lhe havia
imposto ao enviá-lo para o estrangeiro. Tendo-se recusado a assinar um
compromisso que repugnava a sua consciência, deixou de ser bolseiro, e a sua
vida e a dos seus decorreu, de aí em diante, em condições de dificuldade
económica que, por vezes, roçaram pela miséria.»
Tanto Pereira Gomes como Valadares sabiam do que falavam. Ambos eram amigos
íntimos de Monteiro, companheiros de lutas e de exílios. O primeiro fez o
doutoramento sob a sua orientação e o segundo foi bolseiro em Paris na mesma
altura em que Monteiro lá esteve e era seu compadre, padrinho do filho mais
novo.
A partir de finais de 1936, Monteiro viveu ainda com pequenos rendimentos
tais como um subsídio pago pelo IAC (cujo presidente era Celestino da Costa) como
colaborador no serviço de inventariação da bibliografia científica existente em
Portugal. Mas no final de 1941 ou princípio de 1942 o Ministro da Educação
Nacional, Mário de Figueiredo, demitiu Celestino da Costa e em Dezembro de 1942
«dispensou» os serviços de Monteiro, isto é, despediu-o.
António Aniceto Monteiro exilou-se pois no Brasil em 1945 porque estava
desempregado, não tinha meios de subsistência em Portugal, por se recusar a
assinar a tal declaração de submissão ao regime político salazarista.
A principal razão que me leva a escrever este artigo é o facto de ter lido
na Wikipedia, a propósito de
António Aniceto Monteiro, que
«Existem duas interpretações dos
motivos que o terão levado a abandonar Portugal. Uma primeira interpretação
refere motivos políticos, que ele foi impedido de ter uma carreira
universitária em Portugal, pois recusou-se a assinar um documento onde
declarava o apoio ao salazarismo e o repúdio ao comunismo e às «ideias
subversivas». Uma outra interpretação é a de que o próprio António Aniceto
Monteiro deixou escrito de forma clara que abandonou o país, não por motivos ou
perseguições políticas mas, por estar saturado das obstruções dos seus pares
académicos.»
Para esta segunda «interpretação», a Wikipedia remete o leitor
para o livro de Jorge Buescu «Matemática em Portugal, Uma Questão de
Educação». De facto, foi este autor que imaginou tal
«interpretação». Segundo ele, as razões que levaram
Monteiro ao exílio estão num artigo do nº 10 da «Gazeta de Matemática», de
Abril de 1942, páginas 25-26, «Origem e objectivo desta Secção [MOVIMENTO
MATEMÁTICO]», que está reproduzido no Anexo. É aqui que,
segundo a Wikipedia, Monteiro
«deixou escrito de forma clara» os motivos do seu exílio.
É certo que eu já abordei este assunto nos meus artigos «Sobre as perseguições a cientistas durante
o fascismo» (Revista «Vértice», 166) e «António Aniceto
Monteiro – lutas, perseguições e exílios» («Boletim» da Sociedade Portuguesa de
Matemática, 74). Mas também é verdade que continuam a alastrar na rede citações
da referida «interpretação», devido à projecção mediática do seu autor. É, por
exemplo, o caso da versão inglesa da entrada sobre António Aniceto Monteiro na Wikipedia.
Este falseamento da História é tanto mais estranho quanto o seu autor tem
escrito vários artigos de opinião (nomeadamente, no jornal «Público») onde tem
proclamado ser um acérrimo defensor «do conhecimento, do rigor e da exigência».
Pois em nome do conhecimento, do rigor e da exigência já é mais do que
tempo de ser reparado este mal que foi feito.
ANEXO
Origem e objectivo desta Secção
Pensou-se há algum tempo em
publicar um jornal — que teria por título Movimento
Matemático — destinado a lançar uma campanha para uma reforma dos estudos
matemáticos em Portugal e a fazer a propaganda das principais correntes do
movimento matemático moderno.
Parece-me evidente a
necessidade de publicar um tal jornal precisamente porque o nosso país anda
longe das correntes vitais do pensamento matemático moderno e porque o nosso
ensino das ciências matemáticas necessita de uma remodelação completa:
remodelação dos programas de estudo, da organização da licenciatura em
Ciências Matemáticas, da preparação dos professores do ensino secundário, das
provas de doutoramento e dos métodos de recrutamento do pessoal docente
universitário.
É indiscutível que
assistimos hoje no nosso país a uma verdadeira efervescência de actividade no
campo das ciências matemáticas. Demonstram esta afirmação o aparecimento
sucessivo no curto prazo de cinco anos de 1.º) Portugaliae Mathematica, fundada em 1937; 2.º) Seminário Matemático de Lisboa (1938) que toma em Novembro de 1939
o nome de Seminário de Análise Geral;
3.º) Centro de Estudos de Matemáticas
Aplicadas à Economia, fundado pelo 1.º Grupo do Instituto Superior de
Ciências Económicas e Financeiras (1938); 4.º) Gazeta de Matemática, Janeiro de 1939; 5.º) Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, fundado pelo Instituto
para a Alta Cultura em Fevereiro de 1940; 6.º) Sociedade Portuguesa de Matemática, Dezembro de 1940; 7.º) Centro de Estudos Matemáticos do Porto,
fundado pelo Instituto para a Alta Cultura em Fevereiro de 1942.
Anuncia-se para breve a
publicação do Boletim da Sociedade
Portuguesa de Matemática, das Publicações
da Secção de Matemática da Faculdade de Ciências do Porto e de uma colecção
de Estudos de Matemática; projecta-se
a criação de um Estúdio de Matemática
em Lisboa.
Todas estas organizações e
publicações trabalham por um ressurgimento da cultura matemática portuguesa!
Se tudo isto é muito
animador e nos permite ter esperanças num triunfo mais ou menos próximo, não
devemos ter ilusões de espécie alguma sobre as dificuldades que nos esperam!
Há que contar — isto é de
todos os tempos! — com um recrudescimento da hostilidade da ignorância e da má
fé; da hostilidade daqueles para quem a estagnação ou a decadência da nossa
cultura matemática é a condição necessária para a realização de objectivos que
nada têm que ver com as ciências matemáticas, daqueles que tremem perante a
ideia da existência de uma juventude estudiosa consagrando inteiramente a sua
vida e o seu entusiasmo a uma causa pela qual eles nunca lutaram — porque o esforço
e a diligência no estudo revelam de uma maneira evidente os erros do passado e
as deficiências do presente —, da má-fé daqueles que apregoam um interesse e um
entusiasmo pelo desenvolvimento da cultura matemática que são desmentidos
categoricamente pela sua actuação presente, da má-fé daqueles que consideram
como revelações de inteligência e de capacidade a adoração da rotina que o uso
consagrou e de que eles são por vezes os mais legítimos representantes; há que
contar ainda com a ignorância (e que enciclopédica ignorância!) daqueles que
afirmam que o nosso país está perfeitissimamente ao corrente do movimento
matemático moderno, que o nível dos nossos estudos matemáticos se pode por a
par do dos países mais avançados, e finalmente há que contar com a indiferença
(que estranha e cómoda indiferença!) daqueles que dizem que no nosso país não
há nada a fazer, que os portugueses são incapazes de realizar um esforço
persistente e continuado e que portanto são incapazes de contribuir para o
progresso das ciências matemáticas!
Pensamos que o aparecimento
destas manifestações deve servir apenas para nos indicar que seguimos pelo
bom caminho — porque a cada tarefa realizada a reacção deve aumentar — e que
nunca devemos desviar a nossa atenção do trabalho metódico e persistente para
controvérsias de carácter duvidoso.
É precisamente pelo estudo,
pelo trabalho de investigação e pela propaganda das matemáticas, que se pode
preparar o ressurgimento dos estudos matemáticos em Portugal, mas importa
evidentemente orientar a nossa actuação pelas lições que nos são dadas pela
nossa experiência e pela experiência das outras nações. Há que definir um rumo,
e segui-lo enquanto a experiência mostrar que estamos no bom caminho!
O desenvolvimento rápido da
Gazeta de Matemática — em particular
a partir do início do presente ano lectivo — tornou possível o alargamento
imediato da sua acção cultural e daí nasceu a ideia — para evitar uma dispersão
de esforços que o momento actual não permite — de criar na Gazeta uma secção em que se desenvolveria a pouco e pouco o plano
de acção que se pretendia realizar no Movimento Matemático. É esta a origem
desta secção que se iniciou no n.º 9 da Gazeta.
Infelizmente a situação
actual da Gazeta não permite ainda
dar a esta secção todo o desenvolvimento que era necessário. Por isso temos que
nos limitar a assinalar aos leitores deste número as realizações e iniciativas
de valor cultural sob o ponto de vista matemático de que temos conhecimento.
Esperamos que em breve seja possível, por meio da colaboração efectiva de todas
as pessoas interessadas no desenvolvimento da cultura matemática, lançar uma
campanha para uma reforma dos estudos matemáticos em Portugal e fazer a
propaganda das principais correntes do movimento matemático moderno.
ANTÓNIO MONTEIRO