sábado, 22 de fevereiro de 2014

Impressões sobre António Aniceto Monteiro (Elon Lages Lima)

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Conheci Monteiro por causa de Bento de Jesus Caraça. Antes deles, os únicos matemáticos portugueses de quem ouvira falar tinham sido Pedro Nunes e Gomes Teixeira. Isto sem mencionar os livros elementares de Álgebra e Aritmética de Serrasqueiro, bem conceituados entre meus professores do ginásio e estudantes da geração que precedeu a minha.
Ninguém me apresentou ou sugeriu Caraça. Encontrei-o por acaso, num alfarrábio em Fortaleza, sob a forma de um livro com páginas ainda dobradas. Chamava-se “Licões de Álgebra e Análise”, vol. 1. Algum aficionado certamente o comprara pelo título ou ganhara-o de presente, e se desfizera dele, desapontado pelo primeiro contacto com seu conteúdo. Exatamente esse estranho índice e os inesperados conceitos que vislumbrei nas páginas expostas entre os cadernos dobrados é que me fascinaram. Comprei o livro e, por meio dele, me iniciei no mundo dos conjuntos, números transfinitos, números naturais, inteiros, reais e complexos, todos construídos passo a passo. Caraça era meu único professor, meu guia. Um aspecto interessante do livro eram as indicacões bibliográficas comentadas, no fim de cada capítulo. Devido a elas, encomendei “Pure Mathematics” de Hardy e “Survey of Modern Algebra” de Birkhoff-MacLane a uma livraria no Rio. Junto com os livros, veio um catálogo no qual estavam a monografia “Filtros e Ideais” de Monteiro e a “Aritmética Racional”, que ele escreveu junto com J. Silva Paulo.
Achei mais fácil começar por Monteiro. A Aritmética foi uma delícia, embora me deixasse curioso de saber se os estudantes do Liceu em Portugal (ou em qualquer outro país) eram, salvo os muito bem dotados, capazes de apreciar a elegância e a subtileza daquela exposição.
Monteiro morou no Rio de Janeiro cerca de quatro anos, entre 1945 e 1949. Nesta época, seus interesses matemáticos se dividiam entre a Topologia Geral e os Conjuntos Ordenados, evoluindo daquela para estes. Mas sua energia pessoal era grande o bastante para permitir-lhe ação politica e, neste campo, seu maior interesse era a derrubada da ditadura de Salazar. E claro, porém, que não havia aqui muito espaço para movimento, especialmente porque a alta direção da Universidade do Brasil (como então se chamava a Universidade Federal do Rio de Janeiro), era ligada, por laços afetivos e ideológicos, com o governo português. A posição de Monteiro tornava cada vez mais difícil a renovação de seu contrato e por fim ele teve de emigrar para a Argentina. Em Bahia Blanca, cumprindo sua vocação de pioneiro, agora já definitivamente dedicado a Lógica Matemática, formou e liderou um grupo, até hoje florescente e significativo, de pesquisadores naquela área, entre os quais se destaca seu filho. A distância geográfica e cultural o afastou da politica portuguesa, trazendo-o mais para a Matemática e para a atividade de criação de uma escola de alto nível, o que também demandava esforço e exercício político, embora de outra natureza.
No período em que esteve no Brasil, Monteiro associou-se principalmente a Leopoldo Nachbin e Maurício Peixoto, na época jovens matemáticos tentando iniciar suas carreiras num ambiente em que a tradição de pesquisa matemática era praticamente nula. Com sua forte e inquieta personalidade, ele congregou estudantes, organizou seminários e fundou uma coleção de monografias chamada “Notas de Matemática”, da qual o primeiro número foi seu trabalho sobre Filtros e Ideais. A afinidade de interesses matemáticos de Monteiro era bem maior com Nachbin do que com Peixoto. Sua influência sobre o primeiro se reflecte na monografia intitulada “Topologia e Ordem”, publicada por Nachbin sobre os espaços topológicos ordenados. É curioso observar, entretanto, que Peixoto foi o único matemático brasileiro com quem Monteiro escreveu um trabalho em conjunto, publicado na revista Portugaliae Mathematica sob o título “Le nombre de Lebesgue et la continuité uniforme”.
“Filtros e Ideais” foi meu primeiro exemplo de como se pode elaborar uma teoria matemática abstrata e não trivial a partir de um sistema de axiomas extremamente simples como o dos conjuntos ordenados. Embora estudos posteriores e opção pessoal me tenham feito seguir rumos matemáticos bem diferentes, a leitura da monografia de Monteiro familiarizou-me com métodos gerais e isto foi útil anos depois em minha tese de doutoramento, quando desenvolvi a teoria dos espectros de espaços topológicos.
Encontrei-me com Monteiro duas vezes, em visitas que fez ao Brasil, já morando na Argentina. A primeira no Rio, quando ainda era estudante, e a segunda em Poços de Caldas, numa reunião matemática, após regressar de meus estudos em Chicago. Em ambas ocasiões, expressei minha admiração pelo trabalho que realizou em três países e meus agradecimentos pelo papel que desempenhou na minha formação. Estou certo de que muitos matemáticos portugueses, brasileiros e argentinos foram ainda mais beneficiados por seu trabalho e se sentem ainda mais reconhecidos do que eu.
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Impressions on António Aniceto Monteiro (artigo do Boletim do CIM)