Conheci Monteiro por
causa de Bento de Jesus Caraça. Antes deles, os únicos matemáticos portugueses
de quem ouvira falar tinham sido Pedro Nunes e Gomes Teixeira. Isto sem
mencionar os livros elementares de Álgebra e Aritmética de Serrasqueiro, bem
conceituados entre meus professores do ginásio e estudantes da geração que
precedeu a minha.
Ninguém me apresentou ou sugeriu Caraça. Encontrei-o por acaso, num
alfarrábio em Fortaleza, sob a forma de um livro com páginas ainda dobradas.
Chamava-se “Licões de Álgebra e Análise”, vol. 1. Algum aficionado certamente o
comprara pelo título ou ganhara-o de presente, e se desfizera dele, desapontado
pelo primeiro contacto com seu conteúdo. Exatamente esse estranho índice e os
inesperados conceitos que vislumbrei nas páginas expostas entre os cadernos
dobrados é que me fascinaram. Comprei o livro e, por meio dele, me iniciei no
mundo dos conjuntos, números transfinitos, números naturais, inteiros, reais e
complexos, todos construídos passo a passo. Caraça era meu único professor, meu
guia. Um aspecto interessante do livro eram as indicacões bibliográficas
comentadas, no fim de cada capítulo. Devido a elas, encomendei “Pure
Mathematics” de Hardy e “Survey of Modern Algebra” de Birkhoff-MacLane a uma
livraria no Rio. Junto com os livros, veio um catálogo no qual estavam a
monografia “Filtros e Ideais” de Monteiro e a “Aritmética Racional”, que ele
escreveu junto com J. Silva Paulo.
Achei mais fácil começar por Monteiro. A Aritmética foi uma delícia, embora
me deixasse curioso de saber se os estudantes do Liceu em Portugal (ou em
qualquer outro país) eram, salvo os muito bem dotados, capazes de apreciar a
elegância e a subtileza daquela exposição.
Monteiro morou no Rio de Janeiro cerca de quatro anos, entre 1945 e 1949.
Nesta época, seus interesses matemáticos se dividiam entre a Topologia Geral e
os Conjuntos Ordenados, evoluindo daquela para estes. Mas sua energia pessoal
era grande o bastante para permitir-lhe ação politica e, neste campo, seu maior
interesse era a derrubada da ditadura de Salazar. E claro, porém, que não havia
aqui muito espaço para movimento, especialmente porque a alta direção da
Universidade do Brasil (como então se chamava a Universidade Federal do Rio de
Janeiro), era ligada, por laços afetivos e ideológicos, com o governo
português. A posição de Monteiro tornava cada vez mais difícil a renovação de
seu contrato e por fim ele teve de emigrar para a Argentina. Em Bahia Blanca,
cumprindo sua vocação de pioneiro, agora já definitivamente dedicado a Lógica
Matemática, formou e liderou um grupo, até hoje florescente e significativo, de
pesquisadores naquela área, entre os quais se destaca seu filho. A distância
geográfica e cultural o afastou da politica portuguesa, trazendo-o mais para a
Matemática e para a atividade de criação de uma escola de alto nível, o que
também demandava esforço e exercício político, embora de outra natureza.
No período em que esteve no Brasil, Monteiro associou-se principalmente a
Leopoldo Nachbin e Maurício Peixoto, na época jovens matemáticos tentando
iniciar suas carreiras num ambiente em que a tradição de pesquisa matemática
era praticamente nula. Com sua forte e inquieta personalidade, ele congregou
estudantes, organizou seminários e fundou uma coleção de monografias chamada
“Notas de Matemática”, da qual o primeiro número foi seu trabalho sobre Filtros
e Ideais. A afinidade de interesses matemáticos de Monteiro era bem maior com
Nachbin do que com Peixoto. Sua influência sobre o primeiro se reflecte na
monografia intitulada “Topologia e Ordem”, publicada por Nachbin sobre os
espaços topológicos ordenados. É curioso observar, entretanto, que Peixoto foi
o único matemático brasileiro com quem Monteiro escreveu um trabalho em
conjunto, publicado na revista Portugaliae Mathematica sob o título “Le nombre
de Lebesgue et la continuité uniforme”.
“Filtros e Ideais” foi meu primeiro exemplo de como se pode elaborar uma
teoria matemática abstrata e não trivial a partir de um sistema de axiomas
extremamente simples como o dos conjuntos ordenados. Embora estudos posteriores
e opção pessoal me tenham feito seguir rumos matemáticos bem diferentes, a
leitura da monografia de Monteiro familiarizou-me com métodos gerais e isto foi
útil anos depois em minha tese de doutoramento, quando desenvolvi a teoria dos
espectros de espaços topológicos.
Encontrei-me com Monteiro duas vezes, em visitas que fez ao Brasil, já
morando na Argentina. A primeira no Rio, quando ainda era estudante, e a
segunda em Poços de Caldas, numa reunião matemática, após regressar de meus
estudos em Chicago. Em ambas ocasiões, expressei minha admiração pelo trabalho
que realizou em três países e meus agradecimentos pelo papel que desempenhou na
minha formação. Estou certo de que muitos matemáticos portugueses, brasileiros
e argentinos foram ainda mais beneficiados por seu trabalho e se sentem ainda
mais reconhecidos do que eu.
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Impressions on António Aniceto Monteiro (artigo do Boletim do CIM)
Impressions on António Aniceto Monteiro (artigo do Boletim do CIM)