segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Actuação de António Aniceto Monteiro em Lisboa entre 1939 e 1942 (Hugo Ribeiro)


No primeiro volume (1937) desta publicação [Portugaliae Mathematica], fundada e, nos primeiros anos, editada e administrada por António Monteiro, foi publicada a sua tese de doutoramento (1936) na Universidade de Paris onde ele estudava como bolseiro da Junta de Educação Nacional (depois «Instituto para a Alta Cultura»). Para que a Monteiro fosse possível fazer e ensinar Matemática com alguma estabilidade foi necessário que abandonasse Portugal (1945) onde só voltou 32 anos depois.
Com uma ou outra excepção a Matemática (pura) não era cultivada em Portugal e, assim, as escolas superiores limitavam-se a preparar professores das escolas secundárias, ou técnicos e cientistas que porventura a utilizariam. Foi nesta atmosfera, enormemente agravada pela opressão da ditadura e as guerras civil em Espanha e na Europa, que Monteiro, não participante do ensino oficial, fez entrar uma lufada de ar fresco impulsionando decididamente a Matemática neste país. Este meu breve testemunho refere-se simplesmente ao período 1939-1942 em Lisboa onde ele criou as bases de desenvolvimento então impensáveis.
Além de se ocupar dos planos e mínimos detalhes da publicação e divulgação da Portugaliae Mathematica, já antes de 1939 Monteiro tinha com antigos bolseiros promovido exposições sistemáticas (e a sua publicação) de tópicos que importava divulgar. A clara visão da urgência de trabalho verdadeiramente construtivo em Portugal, a sua incansável iniciativa e, antes de tudo, o seu entusiasmo e determinação eram imediatamente perceptíveis e contagiosos. Cedo teve espontânea colaboração, e especialmente valiosa foi, desde o início, a de Manuel Zaluar Nunes e a de José da Silva Paulo – que durante dezenas de anos aqui mantiveram as revistas criadas. O Instituto para a Alta Cultura, presidido por Celestino da Costa e aconselhado por Pedro José da Cunha, interessava-se, apoiava os seus projectos, e tinha atribuído a Monteiro, que sempre teve necessidade de ocupar muito do seu tempo com lições privadas, uma pequena bolsa. A Faculdade de Ciências emprestava uma sala onde nos reuníamos quase todas as tardes (e mesmo à noite) para nos ocuparmos da Portugaliae Mathematica e, mais tarde, também para seminários informais. Foi a partir destes seminários, onde chegavam as primeiras publicações obtidas por troca, que Monteiro criou o Seminário de Análise Geral e o Centro de Estudos Matemáticos do IAC. Hausdorf (1914) definira e estudara os espaços métricos, Fréchet (1926) publicara Les espaces abstraits e Sierpínski (1928) a sua introdução à topologia geral. Em contraste com a explosão de hoje a Matemática prosseguia vagarosamente, e nós aprendíamos a conhecer melhor as nossas deficiências, o nosso isolamento e as deficiências das nossas bibliotecas. Monteiro iniciou e dirigiu, para o IAC, um serviço de inventariação da bibliografia científica em Portugal. Nas discussões do Seminário, Monteiro punha problemas, observávamos como procurava resolvê-los, tentávamos contribuir e a pouco e pouco aprendíamos a avançar por nós próprios. Começávamos a preparar para publicação os resultados (necessariamente elementares) do nosso trabalho. Nunca mais conheci ninguém que, para aquele nosso nível, fosse tão eficiente na promoção de jovens. Monteiro preocupava-se em que logo que possível fôssemos estudar num bom centro estrangeiro; e conseguiu para nós (também não participantes no ensino oficial) bolsas do IAC que nos permitissem dedicar mais do nosso tempo ao estudo. Outra sua iniciativa, a Gazeta de Matemática, congregou igualmente professores do ensino secundário, dirigia-se a estudantes que entravam nas Universidades e divulgava o que se fazia no Centro e na Sociedade Portuguesa de Matemática que Monteiro também fundou. Tudo isto impulsionou, decerto, o aparecimento e depois desenvolvimento das publicações matemáticas do Porto, da Portugaliae Physica, da Gazeta de Física, da Revista de Economia; e o contacto saudável, embora mais difícil, com outros centros de investigação que se tinham formado, como o da Estação Agronómica Nacional, contribuía para abrir perspecti¬vas muito prometedoras e únicas no desenvolvimento do país.
Desenvolvia-se a correspondência com matemáticos estrangeiros alguns dos quais enviavam trabalhos para a Portugaliae Mathematica, e Monteiro incitava-nos a comunicar com os provavelmente interessados no que fazíamos. Fréchet, Fantappié e Severí vieram fazer lições no Centro. Monteiro conseguia para nós bolsas do IAC no estrangeiro. Mas a guerra na Europa e a burocracia eram dificuldades impossíveis ou difíceis de ultrapassar. Em 1942 um de nós foi para Zürich, e pouco depois três outros para Roma. De fora das escolas, as portas para o futuro da Matemática em Portugal tinham sido, decidida e largamente, abertas pelos esforços, dedicação e coragem de António Monteiro. Mais tarde, decerto com melhores oportunidades, um de nós, José Sebastião e Silva, pôde manter aqui uma brisa desse ar fresco que 40 anos depois, ainda podemos respirar.

Hugo Ribeiro: Actuaçãode António Aniceto Monteiro em Lisboa entre 1939 e 1942, Portugaliae mathematica 39 (1-4), V-VII (1980).