domingo, 30 de dezembro de 2012

Brasil, 1948: «Isto é um inferno...» (Carta a Guido Beck, de 28 de Julho de 1948, proveniente do Rio de Janeiro)

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Aproveito a oportunidade para lhe falar de outros assuntos. O Carlos Chagas director do Instituto Biofísica da Universidade do Brasil pediu-me para escrever ao Valadares perguntando se ele estaria disposto a trabalhar no seu Instituto. Arranjando trabalho para ele e para a mulher dar-lhe-ia um vencimento de 12 contos por mês. Resta estudar as restantes condições do contrato. Vamos a ver o que diz o Valadares. Agora está como «maitre de recherches» em Paris, mas a vida por lá ainda está difícil.
A minha situação continua na mesma ou antes está cada vez pior. Este mês não recebi ordenado e não sei como vou pagar a renda da casa dentro de 3 dias bem como o ordenado da empregada. Já devo 4 ou 5 meses de mensalidades no colégio de meus filhos. Isto é um inferno e estou cada vez mais desesperado com os meus colegas que nada fazem para apressar a resolução do problema. O contrato está neste momento no DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) e ainda tem que voltar para a Presidência da República. Se não se resolve tudo isto dentro de 15 dias estarei até ao fim de Setembro sem vencimentos, porque não receberei no fim de Agosto. Neste momento a Faculdade já me deve 25 contos de ordenados. O meu crédito está praticamente esgotado. Não sei a quem pedir dinheiro. Um inferno que você conhece bem.
Mande-me as notícias que lhe pedi sobre a Argentina, com a possível brevidade. Se acha que é possível viver em sossego aí, pode fazer algumas sondagens a respeito da possibilidade de me arranjarem um contrato estável. Trate do problema sem compromisso. Devo porém dizer-lhe que estou cada vez mais inclinado a sair do Brasil. Isto é uma bagunça! De resto este ano o Nachbin vai para os Estados Unidos e as pessoas que cá ficam tem pouco interesse. Vamos a ver. Não se esqueça de mandar a sua opinião sobre o Peru, país que gostava muito de conhecer. Se encontrasse uma solução satisfatória estaria disposto a sair do Brasil em fins de Dezembro. Escreva na volta do correio sobre este assunto.
Em tempos o Hugo Ribeiro, que está em Berkeley, escreveu-me (em Dezembro do ano passado) perguntando-me se estaria interessado em ir para Bozeman (estado de Montana) nos Estados Unidos. A incerteza da situação internacional levou-me a pôr de lado essa ideia. Contei o facto ao Stone numa carta recente e a esse respeito disse-me o seguinte na carta que me escreveu:
«I am sorry that you were not able to consider the post at Bozeman seriously. To go there would undoubtedly have been a strange and perhaps trying experience for you, but it might have led to a position more nearly in accord with your tastes and needs. Montana, of course, is one of the thinly populated parts of the country with great mountains and some remnants of the “frontier spirit”. Perhaps you will think again of coming to the U.S. If so, please keep me informed in the event that I have knowledge which could be of use to you.»
Por enquanto não estou animado a pensar em ir para os Estados Unidos, muito embora reconheça as enormes vantagens que teria sob o ponto de vista científico. Não posso prever o que vai acontecer, continuará a vigorar um regime democrático ou continuará nitidamente para um regime fascista? Não tenho a mais pequena intenção, enquanto estiver no estrangeiro, de me ocupar de actividades políticas. O pouco que aqui fiz há mais de dois anos passados, mostraram-me que não tenho jeito, nem capacidade, para semelhantes actividades - que prejudicaram de resto a minha vida científica.
Também conheço mal a situação na Argentina. Mas seria possível viver em paz, sem ser perseguido pelas minhas opiniões? Deve responder com precisão a esta pergunta, dizendo o que pensa.
A vida está cada vez mais difícil e talvez chegue o dia em que a única solução na América seja um indivíduo atirar-se ao mar.
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