sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Os passeios no Tejo numa biografia literária de Soeiro Pereira Gomes

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Encontro-me na casa do Arquimedes [da Silva Santos], na Póvoa; depois de ter lido, em cópia, o discurso, peço e obtenho esclarecimentos: os passeios pelos montes atrás de Vila Franca a ler o Manifesto Comunista deram-se em 1941, depois de se ter constituído um Comité Regional das Juventudes Comunistas; o primeiro passeio de barco foi no Verão de 1941; antes de Junho de 1941 com Soeiro falavam mais em coisas literárias. O poeta continua a falar daqueles tempos e mostra-me fotografias antigas e, entre outras, uma do passeio de barco em que aparecem, além dele próprio, Pereira Gomes, Manuel Campos Lima, Rui Grácio, Cândida Ventura, Álvaro Cunhal, Dias Lourenço, Aniceto Monteiro, Piteira Santos, Guilherme Morgado...
A esses passeios refere-se Joaquim em duas cartas ao irmão Alfredo. Na de 3 de Junho de 1940 conta com entusiasmo:

Há tempos fui dar um belo passeio e lembrei-me de ti e do Jaime. Passeio de barco à vela. Vela vermelha e gente vermelha: malta do Diabo. Fomos almoçar às obras uma caldeirada à fragateiro. Cantou-se (que cantos!...) e conversou-se à vontadinha. Lembrança do Redol de quem sou agora muito amigo. Vou com ele até para férias em meados de Julho.

Noutra, de 9 de Abril de 1941, anuncia mais um «passeio de barco, Tejo acima, com a malta do “Diabo”» a realizar-se no dia 27 do mês.
Os passeios no barco Liberdade de Jerónimo Tarrinca no Verão de 1941, de Alhandra e Vila Franca até ao local das Obras perto de Azambuja, um lugar aprazível e com praia fluvial para tomar banho e fazer piqueniques, ou apenas indo Tejo abaixo Tejo acima, com caldeiradas a bordo, eram, na realidade, momentos de alta escola política e partidária, como as excursões e visitas a museus e locais históricos, como as actividades culturais e desportivas nas colectividades, onde se processava aquela que António Dias Lourenço chama «uma mútua dádiva entre trabalhadores manuais do Baixo Ribatejo e a intelectualidade portuguesa mais avançada e progressista» (*). No Liberdade passearam o dr. Fernando Piteira Santos e o prof. Alfredo Pereira Gomes, o dr. Francisco Eduardo Pulido Valente e o eng. Correia Guedes, o dr. João Ferreira Marques e o prof. Bento de Jesus Caraça, Manuel da Fonseca Barraquinha, vilafranquense e responsável pelas caldeiradas, Cândida Ventura e o advogado Inácio Fiadeiro, o dr. Augusto Sá da Costa, o poeta e crítico Mário Dionísio, que lembra Soeiro a ler versos, e tantos outros.
Num desses passeios participa, convidado por Redol, Pedro Neto. No dia e na hora marcados, o jovem vai ao cais da Cimento Tejo e lá encontra Soeiro Pereira Gomes com uma pessoa desconhecida, que depois virá a saber ser Álvaro Cunhal. Com o barquito de um trabalhador da Fábrica, João Corneta, os três foram ao encontro do Liberdade, onde encontraram, entre outros, António Dias Lourenço, António Ramos de Almeida, Lopes-Graça e Bento de Jesus Caraça, que o chamou de lado para lhe perguntar sobre a organização das Juventudes Comunistas em Vila Franca. Pedro Neto responde que na sua opinião «o grupo dos jovens devia estar integrado diretamente na organização do partido».
Os jovens e a Federação das Juventudes Comunistas eram objectivos prioritários dos reorganizadores. Em Vila Franca, porém, já existia um grupo de moços ligados ao Alves Redol e ao António Dias Lourenço, que se interessavam por política e literatura. Eram eles, já o vimos há pouco, além de Pedro Neto e Arquimedes, Octávio Pato, António Tavares, António Lopes e Jorge Reis, que em 1941 publicavam um jornalzinho, escrito à mão, chamado Querer É Poder. Todos esses jovens, como já lembrou Arquimedes e como me repete Jorge Reis, que encontro em Cascais no mês de Abril de 1996, depois da invasão nazi da União Soviética de 22 de Junho de 1941, entram nas Juventudes Comunistas e começam a trabalhar a sério na militância partidária.
Para Pedro Neto, então, esses e os outros jovens deviam-se integrar no Partido para unir as forças, pois não tinha sentido haver, por exemplo, na fábrica Cimento Tejo, onde ele trabalhava, duas organizações comunistas: o partido, que certamente existia, e os jovens.
Até ao passeio no Liberdade, à excepção do episódio do pequeno manifesto de 1938, o relacionamento entre Soeiro e Pedro Neto tinha sido rigorosamente isento de interesse partidário e até político. «Só no Inverno de 1940 é que ele me fala levemente no Partido», lembra Pedro. «Então, o senhor sabe quando Joaquim ingressou no Partido?», pergunto. «Certeza só tenho depois do nosso encontro lá no Sobralinho, quando Soeiro já era responsável do Comité Local em Alhandra.» Aconteceu que a sugestão de Pedro Neto a Bento de Jesus Caraça tinha sido aceite. (...)
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(*) Lourenço, António Dias, Vila Franca de Xira. Um Concelho no País, Edição da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1995, p. 160.


(Soeiro Pereira Gomes, Uma Biografia Literária, páginas 121-123)