sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O regresso de António Monteiro a Portugal de 1977 a 1979 (Alfredo Pereira Gomes)



 
O regresso de António Monteiro a Portugal de 1977 a 1979
Alfredo Pereira Gomes
 
Desde 1945, António A. Monteiro não voltara a pisar solo português, por um compromisso para consigo próprio face à posição obscurantista, adversa à livre criatividade científica e cultural do sistema que dominava a vida política e social portuguesa. Após o restabelecimento dum regime democrático em Portugal em 25 de Abril de 1974, era aspiração dos seus muitos amigos, antigos companheiros, discípulos e admiradores, que fossem criadas condições propícias ao seu regresso senão definitivo pelo menos suficientemente duradouro para que a nova geração de matemáticos o conhecesse e beneficiasse da sua personalidade ímpar de investigador e promotor de escolas de investigação. Alguns dos que com ele trabalharam antes de 1945, iniciámos diligências nesse sentido. Entretanto, impedimentos de ordem pessoal – designadamente a prisão de seu filho Luiz Monteiro, durante mais de quatro meses – fizeram obstáculo a esse desiderato. Somente no início de 1977 António A. Monteiro pôde voltar a Portugal, tendo aqui permanecido cerca de dois anos, como investigador do Instituto Nacional de Investigação Científica (I.N.I.C.), no Centro de Matemática e Aplicações Fundamentais (C.M.A.F.) das Universidades de Lisboa.
Há a registar que não foi simples o desenvolvimento do processo para lhe criar uma posição actuante, como investigador, dentro das estruturas vigentes universitárias ou de investigação científica, pouco adequadas ao ingresso de investigadores. Na correspondência com ele trocada desde Janeiro de 1976 a tal respeito, transparece a sua perplexidade e até algum cepticismo.
Finalmente, em Outubro de 1976, com o seu assentimento, foi dirigida ao Secretário de Estado de Investigação Científica uma exposição propondo a contratação de António A. Monteiro como investigador do I.N.I.C., a título excepcional e no escalão mais elevado, para dedicar-se exclusivamente à investigação e à difusão dos seus resultados. Esta exposição foi apoiada pelos professores de matemática das Universidades de Lisboa, Coimbra e Porto. Nela se fazia ressaltar que António A. Monteiro fora o matemático português que mais decisivamente tinha contribuído para a renovação dos estudos matemáticos em Portugal e que a sua obra de investigação e formação de discípulos tinha prosseguido em centros universitários estrangeiros com assinalado êxito. Afirma-se ainda a convicção de que a presença de António A. Monteiro em Lisboa contribuiria grandemente para dar aos estudos em Álgebra da Lógica o lugar de destaque de que carecia entre nós e para abrir uma via de investigação neste sector. Aquela proposta teve despacho favorável do Secretário de Estado, que na ocasião era um professor de matemática da Universidade de Lisboa.
A sua saúde frágil – obrigando-o embora a cuidados médicos e curtos períodos de repouso – não o impediu de desenvolver uma actividade intensa, iniciada logo após a sua chegada a Lisboa, com o entusiasmo e a pertinácia que sempre lhe conhecemos.
Quando no dia 31 de Maio o visitámos ao fim da manhã, encontrámo-lo alegre, triunfante. Contou-nos que se havia levantado cedo e que às nove horas tinha enfim encontrado a demonstração dum teorema de que se ocupava havia três meses: «é o meu próprio presente de aniversário», comentou. O septuagésimo! Nesta singela anedota pode sintetizar-se a sua personalidade de matemático.
Homem de cultura integral, o seu interesse não se confinava na investigação matemática e afirmava-se infatigavelmente na leitura de obras literárias, de história das ideias ou de sociologia. A nova Sociedade Portuguesa de Matemática recém-criada – fazendo reviver aquela de que ele fora Secretário-Geral desde 1940 – captou a sua atenção, e a sua intervenção foi decisiva, como fundador da Portugaliae Mathematica, para que esta revista se tornasse património dessa Sociedade, tornando assim possível a continuidade da sua publicação com novos editores e renovados apoios.
No C.M.A.F. das Universidades de Lisboa, dependente do I.N.I.C., criou uma linha de investigação em Álgebra da Lógica e proferiu conferências sobre os seus trabalhos, atraindo alguns discípulos, a quem propôs temas de investigação e prodigou conselhos. Daí resultaram notas publicadas em revistas da especialidade e duas teses de doutoramento.
A convite da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, aí proferiu três conferências em Julho de 1977, sobre «Álgebras de Boole cíclicas», «Álgebras de Nelson finitas e lineares», «Aritmética dos filtros em espaços topológicos».
Muito interessado pelas aplicações do seu domínio de investigação, manteve contactos com engenheiros e docentes do Instituto Superior Técnico de Lisboa, em cuja revista «Técnica» publicou um trabalho no número dedicado à memória de Aureliano de Mira Fernandes.
Apesar da longa lista de artigos publicados, certo é que, para António A. Monteiro, era bem menos atraente redigir os seus trabalhos do que ocupar-se de problematizar as suas conjecturas e encontrar as soluções. Por vezes nos falou disso e nos deu a ocasião de instar com ele para não adiar a divulgação dos seus resultados. Em carta de 5 de Junho de 1978, que nos enviou para Paris, escreve: «Hoje tomei finalmente uma decisão importante: suspender o trabalho de investigação e passar a redigir. Estou realmente cansado e penso que mais vale tarde que nunca. Ainda fiz outro trabalho depois que você saiu para Paris». E acrescentava:
«Estou realmente satisfeito com os resultados da minha actividade científica em Portugal. Isto deve-se sobretudo ao Centro de Matemática; (C. M. A. F.), que me proporcionou o tempo livre para estudar. Entretanto, creio que fiz um esforço superior às energias disponíveis na minha idade. Sinto que tenho de moderar a minha actividade. Fora isto, a única notícia suplementar é que ainda não fiz as conferências na Faculdade de Ciências de Lisboa, que propus no mês de Outubro; pela simples razão de que não as marcaram. Não há interesse ou não querem. Paciência! Não volto a insistir que já me dá vergonha. Darei este mês uma série de conferências na Faculdade de Ciências do Porto. A de Lisboa parece que não mudou muito com o tempo. O peso da tradição é uma força extraordinária. Nos 4 ou 5 anos que andei na Faculdade de Ciências como aluno, nunca ouvi falar de «conferências» de matemática. Se houve alguma não me lembro».
No verão desse ano, como incentivo para completar a redacção dos seus trabalhos, sugerimos a António A. Monteiro – de conivência com Lídia Monteiro, sua inigualável companheira – que concorresse, com o trabalho que começara a redigir, ao Prémio Gulbenkian de Ciência e Tecnologia 1978. Após curta hesitação prosseguiu essa tarefa, afincadamente, como em tudo o que empreendia. Quando terminou, pouco tempo antes do fim do prazo do concurso, disse para Lídia, displicentemente: «aí está, para te fazer a vontade e ao Pereira Gomes...». O Prémio foi-lhe conferido. Pode hoje pensar-se que mais importante foi porém a motivação que ele constituiu para António A. Monteiro contrariar o seu gosto prioritário pela investigação e ter dado forma a essa obra, «Sur les Algèbres de Heyting Symétriques», que, neste volume em sua homenagem, se publica.
Cremos caber aqui uma palavra de homenagem que também é devida a sua esposa, pela constante dedicação nas boas e más horas duma longa vida comum e pela lúcida e carinhosa compreensão das exigências dum trabalho científico absorvente e apaixonado como era o dele. Cremos que essa presença solícita foi de grande significação para que – através de tantas vicissitudes que povoaram a vida de ambos – António A. Monteiro tivesse conseguido dar realização plena à sua vocação e ao seu talento.
De regresso a Bahía Blanca a ligação com o C.M.A.F. e as actividades matemáticas de Lisboa não se desvaneceram. Mostra-o a correspondência que manteve com alguns amigos ou discípulos daqui, cartas longas e de grande interesse, onde se refere, simultaneamente, por vezes, às situações de Lisboa, às investigações matemáticas, aos seus discípulos argentinos que de novo vêm ao seu encontro e a quem continua a encorajar e a propor temas de trabalho matemático.
Em carta que nos dirigiu em 31 de Maio de 1979, encara a perspectiva de voltar a Portugal, embora com hesitações. Menciona um período de doença aguda ultrapassada, para acrescentar: «Comecei de novo a levantar-me às 4 ou 5 da manhã para trabalhar. São tão lindos os temas sobre os quais estou trabalhando, que não quero perder tempo». E descreve-os pormenorizadamente em 4 páginas de letra cerrada.
A 5 de Dezembro do mesmo ano: «A grande notícia que me manda é que parece ter conseguido subsídios para publicar a Portugaliae Mathematica de 77, 78 e 79. Seria realmente muito importante que isso se faça». E mais adiante: «...começo a perguntar o que posso eu fazer em Portugal. Neste momento [sublinhado] eu estou convalescente, não posso regressar. Creio que o que têm a fazer é eliminar-me dos quadros do C.M.A.F. e depois veremos». Termina a carta com um «post-scriptum»: «Avante com a Portugaliae Mathematica».
Em 17 de Setembro de 1980 – mês e meio antes de falecer – diz-nos a sua preocupação com o seu estado de saúde. E comenta: «A única coisa que fiz durante este largo período foi escrever à Isabel Loureiro [cuja tese de doutoramento começara a orientar em Lisboa] sobre o seu trabalho, o que fiz com muito esforço e sacrifício. Foram 52 páginas de matemática». E a seguir: «O objectivo principal desta carta é congratular-me com as excelentes notícias que manda sobre a Portugaliae Mathematica. (...) Faltaria resolver o problema da Gazeta [de Matemática] que deveria entregar tudo à Sociedade Portuguesa de Matemática».
Comovidamente pensamos que, não fora a sua saúde muito precária, ele teria regressado à terra da sua juventude, onde as suas iniciativas constituíram, e permanecem, as linhas mestras do desenvolvimento matemático deste país. Apesar das fortes amarras que o prendiam à Argentina, pelos elos familiares e pelo amor à Escola Matemática que ali criou.