quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A guerra no sul de Angola em 1914 (2)

(...)
A crítica condena, por todas as razões, a dispersão das poucas forças expedicionárias de que se dispunha, por pontos longínquos em relação ao Cunene.
O facto é tanto mais estranho quanto é certo que a decisão de mandar para o Pocolo a divisão de artilharia e para Ediva-Otchinjau-Otchitoto a 11ª companhia do B.I.14, foi tomada já em face da missão que nos propúnhamos realizar — opor-se aos Alemães no Cunene.
E desde que íamos para o Cunene, mandava a lógica que não nos enfraquecêssemos, por este lado, de um quarto de infantaria e metade da artilharia expedicionárias. Ficaria no Pocolo a protecção habitual que já lá estava, isto é, a lª companhia europeia de infantaria de Angola, com um dos seus pelotões em Otchinjau, e mais nada. Que solução milagrosa ia levar ao Pocolo uma divisão de artilharia, à custa da inutilização da única bateria que se tinha digna deste nome?
Porque a dispersão de forças à última hora, sem o mais leve factor novo de decisão que levasse a considerar o avanço de forças alemãs, de importância ou não, pelo lado Otchinjau-Pocolo?
Perante a situação que se lhe apresentava e em face dos diminutos meios de acção de que dispunha, o comandante teria a tomar uma resolução geral definitiva, acto essencial da sua vontade, sobre a forma de conduzir e empregar o pequeno agrupamento expedicionário, sabendo o que queria, como queria e por que queria.
O chefe não tinha que aguardar indefinidamente uma última palavra sobre a situação para traçar a conduta geral de emprego do referido agrupamento. Disse Clausewitz: «A guerra é o campo das incertezas». Esperar, para adoptar uma decisão de ordem geral, que todas se dissipem, é arriscar-se a um fatal e nocivo atardamento.

No sul de Angola, a situação de contacto com a Damaralândia deu lugar a preocupações levando a curiosos voos de imaginação.
Pessoas chegavam a ver colunas de Alemães a invadirem o território, através do Baixo Cunene, em várias direcções, após marcha de centenas de quilómetros por precárias vias de comunicação, em travessia rápida das estepas sem fim do norte da Damara, queimadas pelo sol ardente do deserto Namib e áreas kalaharianas, a caminho do planalto ou caindo sobre Moçâmedes!
Arquitectavam, com uma facilidade admirável, disparatados raids à Jameson ou mesmo golpes da natureza dos que mais tarde Von Lettow Vorbeck levou a efeito na África Oriental, noutras condições totalmente diferentes.
Fez-se realizar por competentes oficiais — o capitão Albano de Melo e tenente António Ribeiro Monteiro — o reconhecimento militar do Baixo Coroca, no litoral atlântico, bem como o estudo do acesso possível de forças, invasoras às regiões do Otchinjau através dos contrafortes, da Chela e, em sentido inverso, da viabilidade de uma corrente desembocada do Swartboy Drift ir despenhar-se pelos desfiladeiros da serra, a caminho de Porto Alexandre e Moçâmedes.
E no seu novo plano (1), em face da situação resultante do incidente de Naulila, prescreve o comandante das F.O.:

«Estabelecimento de uma linha (?) de defesa fixa que compreende o triângulo Moçâmedes-Porto Alexandre-Coroca, no litoral, e Chibia-Pocolo-Gambos ou Ediva, no planalto».

Por outro lado, a oeste da Chela, toma vulto uma certa confusão, em que vemos envolvidos, aquele comandante, o governador de Moçâmedes. e o governo geral.
Porque interessa ao nosso estudo, vamos referir os traços principais de algumas das muitas directivas e comunicações que foram trocadas entre as três entidades e que traduzem o ambiente.
Do comandante das F.O. para o governador de Moçâmedes :

«...O serviço de vigilância convém seja estabelecido sobretudo na direcção da foz do Cunene, na do vale do Coroca e na do vale do Béro» (2).

O governador-geral faz transmitir ao governador de Moçâmedes:

«Referência nota 133, de 19; Geral recomendar defesa especialmente Moçâmedes, caminho de ferro e vias acesso este para planalto. Não concordar estabelecer postos Popochiva e Damba Carneiros evitar dispersão forças. Proximidades Porto Alexandre deve ficar força cavaleiros explorando caminhos Papochiva, Damba Carneiros. Estação telegráfica Porto Alexandre deve ser ocupada militarmente. Caso ataque forças superiores, deve abandonar Porto Alexandre avisando telégrafo Moçâmedes. Auxiliares montados possa obter, duas patrulhas oficial existentes, além um corpo de camelos que deve ser constituído desde já aproveitando os existentes, vigiarão caminhos» (3).

O governador de Moçâmedes encarrega o tenente António Ribeiro Monteiro (4) de, conciliando as directrizes recebidas do comandante das F.O. e do governador-geral, realizar o dispositivo de defesa de aí resultante, que vem a, ser:

Ocupar militarmente a estação telegráfica de Porto Alexandre, a qual deveria ser abandonada e prevenido o governador de Moçâmedes telegràficameute, no caso de ataque por forças superiores (não se lhe diz como, nem por onde se faria a evacuação em tal caso); e bem assim montar a exploração dos caminhos de Popochiva e da Damba dos Carneiros, coordenada com uma vigilância afastada no rio dos Elefantes e na Damba das Víboras (aqui por iniciativa do tenente Monteiro), confluências do Cunene.

O comandante das F.O. não simplifica, dirigindo ao governador de Moçâmedes o seguinte telegrama:

«Julgo indispensável organização posto Coroca no local indicado brigada reconhecimentos, um dos itinerários atribuídos Alemães é: vau Erikson Drift-Foz dos Elefantes-Otchiqueque-Popochiva-Porto Alexandre» (5).

O governador de Mocâmedes encarrega o tenente Francisco Maria Rodrigues, comandante do destacamento da 2ª companhia europeia, da defesa próxima de Mocâmedes contra o avanço de forças inimigas pela estrada Chacuto-Moçâmedes, pelo vale do Béro ou pelo caminho de Porto Alexandre.

«Para qualquer dos casos, não dispondo de forças algumas, só pode V. Ex.ª contar com os auxiliares e voluntários, habitantes de Moçâmedes, que de antemão tenha preparado e combinado para em caso de necessidade se reunirem e marcharem para guarnecer qualquer dos postos avançados.
«Deve para isso V. Ex.ª, com urgência, percorrer o rio Béro para além da fazenda do agricultor Torres e escolher a posição adequada para a construção dum entrincheiramento improvisado, simples, e seguidamente proceder da mesma forma para a defesa do vale do Giraul, para o caso de ataque de forças vindas de Porto Alexandre. Para poder armar o maior número possível de voluntários, fica V. Ex.a autorizado a fazer recolher todas as espingardas aperfeiçoadas dos particulares e distribuí-las a auxiliares que se ofereçam, quando os seus donos não possam prestar serviço. De igual forma procederá V. Ex.ª quanto ao armamento existente na 4ª Companhia de Depósito, contando contudo com o indispensável para as praças impedidas nos diversos serviços» (6).

O mesmo governador encarrega ainda o alferes António Henriques da

«defesa da linha férrea de Moçâmedes a Vila Arriaga e do estabelecimento de comunicações para o sul da mesma linha (?) até aos Cubais. A defesa da linha férrea será feita com dois postos...» (7).

Não fatigamos mais o leitor. Basta o que acabamos de ler para avaliar o lamentável ambiente que a visão exagerada e infundada de forças alemãs chegou a gerar em Moçâmedes.
O governador, em face das directivas, por vezes discordantes, que recebe do comandante da expedição e do governo-geral, patenteia a sua confusão e mesmo inquietação nas ordens dadas e nas comunicações para estas entidades dando conta do que fez e do que vai fazer.
Colocado entre o comandante das F.O. e o governador-geral, preso do receio de uma ofensiva alemã, não dispondo, porém, de tropas para realizar medidas de defesa, o governador de Moçâmedes foi, certamente, das três entidades, a de mais difícil situação.

Quem conhece as terríveis condições que o deserto ditava a um avanço de forças invasoras pela faixa litoral, assim como os riscos que correria o inimigo que deixasse o planalto e, aventurando-se pelos desfiladeiros — ratoeiras da Cheia — fosse enterrar-se nas areias do Namib com o fito de -alcançar Porto Alexandre e Moçâmedes, fica, na verdade, admirado da confusão que se gerou.
E afinal, além de uma cobertura tranquilizadora em Porto Alexandre, a principal providência a tomar reduzia-se a preservar, por guarda e por vigilância directa e indirecta, a linha férrea de Moçâmedes, de sabotagens intentadas mais por elementos internos traidores, da raça do boer Duplessis, do que por destacamentos alemães invasores.
A protecção eficaz da linha férrea contra golpe de mão era uma medida, embora aparentemente simples, difícil na realização, por falta de forças.
Em Moçâmedes fez imensa falta um verdadeiro comandante militar.

Vêm a propósito duas palavras sobre o papel e importância de Moçâmedes na defesa.
Então e sempre, no quadro das operações terrestres realizadas no Sul de Angola, ou seja contra indígenas insubmissos ou contra os Alemães invasores, o porto de Moçâmedes tem desempenhado um importante papel.
Base do caminho de ferro e base litoral única do distrito da Huíla, tem-lhe cabido a função de receber reabastecimentos de toda a espécie e expedi-los pelo caminho de ferro. Porto de desembarque e de evacuação; estação depósito.
Mas o caso em que a sua importância atingiria a mais alta sensibilidade não era aquele de que se tratava em 1914, mas sim o de uma ofensiva alemã sobre o planalto vinda do Sudoeste, conjugada com outra para a posse de Moçâmedes. Ao passo que Sá da Bandeira seria o objectivo final das operações terrestres do invasor para o domínio do planalto, Moçâmedes seria o primeiro objectivo da sua acção sobre a costa.
No quadro das operações terrestres do defensor, Sá da Bandeira e Moçâmedes aparecem-nos então como intimamente ligadas.
De facto a queda de Moçâmedes representa a queda do caminho de ferro, a queda automática da costa, com Porto Alexandre e Baía dos Tigres; representa a impossibilidade de utilizar a linha de comunicações por esse porto; sujeita Sá da Bandeira a uma incursão desse lado; enfim, põe o defensor na delicadíssima situação de, ou face ao Cunene ou face ao oceano, ter o adversário nas costas, obrigando assim à divisão de forças.
Em tais circunstâncias, impor-se-ia ao defensor a instante necessidade de diminuir, quanto possível, a sensibilidade de Sá da Bandeira em relação à sorte de Moçâmedes.
Como? Mudando a sua linha de comunicações.
Nunca, nesta forma das operações, seria prudente contar com utilizar Moçâmedes como base marítima definitiva. Deve estar previamente estudada a outra linha de comunicações e tudo preparado para a sua adopção no momento julgado oportuno, inclusive a devida ocupação de Mulondo e Capelongo desde o início das operações.
Os transportes seriam então à base de camionagem.

Não se deve exagerar o perigo, para o planalto defendido e com o caminho de ferro destruído, de uma agressão empreendida, do lado de Moçâmedes, por um inimigo desembarcado.
É que entre o planalto e este porto há o formidável obstáculo da Chela. Barradas as suas poucas e difíceis passagens com alguma artilharia e armas automáticas, nenhumas forças lá passariam. É a verdadeira chave da defesa contra um ataque partindo do litoral. Moçâmedes tem poucas condições de defesa, a qual, no entanto, deve ser efectivada pela forma e com os meios definidos no dispositivo geral da defesa da costa da província, O plano de defesa de uma província ultramarina como é Angola, com fronteiras terrestres e marítimas, tem sempre duas partes — contra a agressão pelas fronteiras terrestres e contra a agressão vinda do mar. E a parte essencial desta última é a defesa dos portos.

O caso concreto de 1914 era, porém, inteiramente diferente. A situação dos Alemães era crítica, as possibilidades de conquista nenhumas. Não era de encarar uma ofensiva pelo Cunene sobre o planalto, nem um ataque por mar sobre Moçâmedes.
(...)

(1) Comunicado ao Governador de Moçâmedes por sua extensa nota nº 32, de 3-Nov.-1914.
(2) Sua nota nº 32, de 3-Nov.-1914.
(3) Telegrama do C.E.M. de Angola, n° 654, de 24-Nov.-1914.
(4) Suas instruções para o ten. Monteiro, de 10-Dez.-1914.
(5) Seu telegrama n° 136, de 14-Dez.-1914.
(6) Nota n° 416/66, de 16-Dez.-1914.
(7) Suas instruções para o alferes, de 16-Dez.-1914.

Ernesto Machado, No sul de Angola. Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1956 (450 páginas). O fragmento aqui reproduzido é das páginas 312-320.
-

Notas:
Recordemos que
«no final de 1914, os alemães invadiram o sul de Angola. A 18 de Dezembro de 1914, em virtude de opções tácticas erradas, Alves Roçadas é derrotado em Naulila pelas tropas alemãs»,
e ainda que
«Em 1914, quando se organizou a primeira expedição a Angola, para defender o sul da colónia, que fazia fronteira com a colónia alemã do Sudoeste Africano, Roçadas foi escolhido para a comandar. O incidente de Naulila, nas margens do Cunene, perto da fronteira entre as duas colónias, incidente entre forças militares portuguesas e alemãs, acontecido em 18 de Outubro, fez com os alemães atacassem o posto isolado de Cuangar, nas margens do Cubango. Alves Roçadas decidiu então, com as poucas forças de que dispunha, atravessar o Cunene e procurar as forças alemãs que tinham entrado no território português. Mas foi derrotado em Naulila, em 18 de Dezembro, e obrigado a atravessar o Cunene e o Caculevar, concentrando-se à volta do Forte Gambos. Devido a esta retirada os povos do Humbe revoltaram-se. Alves Roçadas foi, por isso, chamado a Portugal, embarcando em princípios de Maio de 1915.»

Ver neste blogue: Naulila, Alves Roçadas.